Page 106 - Da Terra
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PRIMEIRA CURA                                                                                                                                                                       LEVEDURA



            Nasci dentro das vinhas, antes da voz humana haver adquirido forma e os sons brilharem no                                                                              Os sessão a minha maior dor de cabeça. Não suporto os ses, porém não sobreviveria sem os ses. Grande
            ar como sinais rupestres desenhados pelo hálito dos animais. Éramos dois irmãos e meu pai                                                                              parte  dos  nossos  problemas  reside  nos  ses,  assim  como  quase  todas  as  soluções  para  esses  mesmos
            influiu  a  gente  a  fazer  horta,  para  que  fixados  ficássemos  à  infância  das  terras  e  nelas                                                                   problemas. Dei-me mal com os ses logo à nascença. Um parto trabalhoso levou a parteira a uma hipótese que

            criássemos  raízes.  Desbravámos  milheiros  de  vinhedo  esgaravatando  com  as  unhas,                                                                               resultou em osso par do. Se não me  vesse quebrado o braço, talvez eu ainda hoje es vesse entalado na
            mergulhando os dedos no estrume, cavando à altura quase de um homem para que os                                                                                        porta do mundo. O mais certo seria estrebuchar um pouco e depois ir-me desta para melhor em aflita
            bacelos vingassem no meio das tempestades. Quando era para a cava, meu pai me a quatro                                                                                 sufocação. Deu que nasci roxo. Meu pai, olhando-me incrédulo (lembro-me como se fosse hoje), perguntou

            ou cinco homens a marcarem ritmo. Um deles chamava-se Noé, foi agricultor e o primeiro a                                                                               se eu seria preto. E se fosse? Lá estão os ses a perseguir-me. Desde que o ar me entrou nos pulmões que os
            cul var vinha neste mundo. Certa ocasião bebeu mais do que o aconselhado, ficou bêbedo e                                                                                ses me perseguem. Preciso dar cabo de todos os ses. Resta saber se terei tempo. Ainda hoje, sentado a olhar
            despiu-se dentro da tenda onde dormia. Um dos filhos aconchegou-o, o outro denunciou-o,                                                                                 ao fundo a baía e o sol que sobre ela ressonava, com as histórias de amor de Robert Walser ao colo, eu

            e vem daí a pior das maldições que é assis r à cisão de uma família. Foi na criação do mundo,                                                                          pensava no que teria sido a minha vida se não  vesse sido o que é. E ao pensar nisto imaginei-me longe,
            antes ainda da voz humana haver adquirido forma e os sons brilharem no ar como sinais                                                                                  naquele lugar longínquo onde a vista se perde, a contar pelos dedos todos os ses da minha parca existência.
            rupestres desenhados pelo hálito dos animais.                                                                                                                          Releio-me e não gosto de nada, olho-me ao espelho e detesto-me. Espanta-me o amor-próprio por aí exibido

                                                                                                                                                                                   como broches de pechisbeque. Aprendi a lidar com a insa sfação socorrendo-me da indiferença. Quero ser-
            Tanto  eu  como  meu  irmão  trabalhámos  desde  cedo  com  bois,  um  a  encher,  outro  a
                                                                                                                                                                                   me indiferente, não me levar a sério, mas o reflexo devolvido pelo espelho é execrável. Vou cumprir mais um
            descarregar. Éramos dois. Ouvíamos o toque de ordem dos homens e respondíamos como
                                                                                                                                                                                   ano de vida com a sensação de que as únicas coisas válidas que fiz são as que ficaram por fazer. Admiro a
            pardais a cantar nos telhados. Eh pau, vira bacalhau, eh pau, vira bacalhau. E nisto o zuído das
                                                                                                                                                                                   autoconfiança dos outros, a vaidade que têm em si mesmos e nos seus feitos, mas não consigo invejá-los.
            abelhas  trazia  ideias  e  a  gente  quedava  a  cogitar  nas  línguas  diariamente  perecidas.
                                                                                                                                                                                   Não invejo ninguém porque a todo o momento sou lembrado de que nada valemos, a vida é este instante
            À velocidade de 365 línguas esbanjadas por ano, prevíamos a ex nção da fala num futuro
                                                                                                                                                                                   fugaz e efémero a pestanejar nos rostos apagados de quem por acaso ama, por acaso odeia. Tudo quanto
            próximo.  Talvez  possamos  entender-nos  melhor  quando  não  houver  língua  com  que
                                                                                                                                                                                   façamos para contrariar essa lei, almejando a memória eterna com feitos heróicos e criações sublimes,
            comunicar, quando todas as palavras  verem desaparecido como a  nta devorada pela
                                                                                                                                                                                   afundar-se-á inevitavelmente no pântano do esquecimento. Homero ainda é falado, mas quem o conhece?
            humidade no papel. Talvez saibamos por fim escutar com as mãos e tocar com o coração e
                                                                                                                                                                                   Quem sabe quem foi ou o que foi? E de que lhe vale o nome repe do ao longo dos séculos? De que vale tanta
            ouvir com o silêncio dos olhos envelhecidos. Faltam epitáfios aos lugares que se viveram,
                                                                                                                                                                                   boca cheia com Jesus Cristo em corpos sem estômago nem alma? Para quê servir de exemplo neste mundo
            dizia meu irmão. E no futuro víamos acontecer a vide após a cava, e após esta a raspa, a redra,
                                                                                                                                                                                   sem emenda? Seja como for, há muito que morri. Por isso mesmo resolvo homenagear-me. A memória que
            e enxofrávamos os grelos para que as pragas não viessem a entrar com as uvas aumentando a
                                                                                                                                                                                   tenho de mim é a de um palhaço com rosto sério diante de um espelho. É uma memória pobre, bem sei, mas
            sede. Era no mês de Maio a primeira cura, antes da voz humana haver adquirido forma e os
                                                                                                                                                                                   ajustada ao som da chuva a bater contra o vidro da janela. Os amigos enviam-me mensagens, dedicam-me
            sons brilharem no ar como sinais rupestres desenhados pelo hálito dos animais.
                                                                                                                                                                                   poemas, tudo para me fazerem lembrar de como sou débil por nunca - ou quase nunca - me lembrar do dia


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